domingo, 4 de abril de 2010

what's love got to do with it?

eu tive um professor de biologia no segundo grau que adorava criar cenas para as coisas que ensinava. lá nos anos 90, numa cidade do interior do rio de janeiro, eu tinha acabado de sair de uma escola católica e fui estudar em uma espécie de cooperativa de professores, a maioria vindos da capital, que tinham uma linha de pensamento muito mais condizente com o que eu sonhava em ser. 

eu sou a professora que, há duas semanas, fez um comentário em aula sobre a sexualidade de shakespeare. há oito anos, na minha graduação, ninguém ousou sugerir pra nós que o grande poeta da língua inglesa pudesse ser gay. a meu ver, isso é uma possibilidade bem óbvia, dada a natureza dos sonetos, e vale ser mencionada. mas, irrelevante pra este texto: o que quero dizer é que sexualidade (e, em especial, a sexualidade com prefixos) era algo que até bem pouco tempo não parecia algo passível de menção, em especial quando poderia "manchar" a imagem de grandes ícones mundiais. mesmo assim, na pequena cidade do interior, meu professor de biologia falava dos prefixos.

recordo-me em especial de uma aula em que falamos de sexualidade e na qual ele criou para nós uma cena dentro do zoológico. "visualizem", ele disse, "imaginem o fim do dia no zoológico, pessoas saindo, os funcionários deixando o recinto, aquele clima à meia luz, e então dom lobão aparece com uma mesa, toalha, velas, louça antiga, queijos e vinhos, tudo preparado para seduzir a loba que com ele divide a jaula, e que há dias ele vinha tentando levar 'no papo'". ele contava então dos dias e diálogos incansáveis, dom lobão fazendo uso de suas melhores cantadas e nada da loba gatinha (sic) dar bola pra ele, até que veio a idéia do jantar romântico. o professor continuava a compor a cena, da qual já não me recordo tão bem, criando um espaço de sedução animal, "humanizando" os lobos. no fim da história, a loba bêbada e já entregue a seu don juan de pêlo marrom lustroso, o professor levantava as sobrancelhas e dizia "hã? hã? que tal?", nos fazendo imaginar o que viria depois.

"os animais também têm seus métodos de sedução", ele completava.* disso eu já sabia: as penas do pavão, o cortejo do faisão, o ballet dos flamingos, tudo em nome da cópula. or is it? meu professor dizia que sim. tudo em nome da cópula. nós nunca veríamos de fato um jantar à luz de velas entre um casal de lobos porque eles cruzam por instinto, pra se reproduzir.

"mas nós, seres humanos, diferentemente do que a igreja nos leva a pensar, nós não fazemos tudo em nome da cópula. nós temos o prazer, o amor. e a partir do momento em que o sexo deixa de ser um mero ato de reprodução animal, a partir do momento em que o sexo envolve todas essas sensações, e emoções, me parece natural que o gênero deixe de ser uma questão". lembro dessa frase como se me tivesse sido dita ontem, achei sensacional estar ouvindo aquilo aos 16 anos, em uma cidade como aquela. aquele professor virou meu herói.

ele não se aprofundou muito, isso é verdade. mas essa aula continua na minha memória, quase 14 anos depois. e hoje vi uma matéria no new york times que me fez relembrar a história: a matéria discute a possibilidade de que animais também se relacionem com outros do mesmo sexo, por uma razão outra que não a cópula. a repórter fala com uma bióloga que descobriu casais de fêmeas de albatrozes (de acordo com a matéria, umas das espécies mais monogâmicas que existem, e aparentemente mais monogâmicas que nós, humanos) que vivem juntas há quase duas décadas. isso mesmo, albatrozes meninas, que vivem juntas há quase 20 anos. são vários casais, um terço do total de pássaros naquela região. a matéria diz, e os biólogos afirmam, que não se pode concluir muito a partir disso, porque não se estudou sobre isso ainda (será que vão estudar sobre isso?), não se sabe os motivos disso acontecer, se é algo que tem a ver com uma espécie de afetividade ou o quê. o fato é que os casais de mesmo sexo estão lá, fiéis, firmes, roçando suas barriguinhas e arcando seus pescoços e formando corações.

e cá estou eu, nesse domingo com cara de chuva, cheia de papéis vazios de chocolate ao meu redor, porque afinal é páscoa, e o que é a páscoa para nós pagãos senão o dia de comer chocolate sem culpa (e olha que eu nem gosto muito, mas esse chocolate com laranja... loveit), cá estou eu descabelada, de pijama, considerando fazer um miojo, o apartamento vazio, os restos de um casamento que um dia foi pendurados por todos os cantos, como fantasmas, cá estou eu sozinha, pensando, os albatrozes é que são felizes.


* minhas aspas não são reais, não sei o paradeiro do meu professor. são apenas ilustrativas do que me lembro de seu discurso. apenas para separar o texto "dele" do meu. por esse mesmo motivo, não uso seu nome neste texto. pode ser que ele não tenha querido dizer nada disso, enfim, e que eu é que tenha ouvido dessa forma. de qualquer maneira, agradeço a ele por me abrir esses caminhos de pensamento, intencionalmente ou não.