sexta-feira, 24 de abril de 2015

sobre fraturas, e cicatrizes, e a perda, e a vida

quando eu penso em fratura exposta, penso em cicatriz. é a primeira coisa que me vem à cabeça, inevitável. você vai lá, faz um estrago de respeito no seu corpo, e aí fica uma marca. dói pra sempre. quando o tempo esfria, dói de novo. eu tenho cicatrizes, resultado de uma cirurgia, e sinto isso. cicatrizes são sempre associadas ao feio, as pessoas têm vergonha, eu acho que é assim porque uma cicatriz mostra algo que devia ser secreto, é uma exposição involuntária de uma parte de você, uma história, algo que seria íntimo, não tivesse agora carimbado. às vezes tira a simetria do corpo, que a gente tanto tenta manter, que é tão associado ao "belo". às vezes tira a forma que se espera de alguém. cicatrizes quebram com expectativas, são uma denúncia não-autorizada.

quando eu penso em tatuagens, penso que são como cicatrizes autorizadas. fazer uma tatuagem é provocar uma cicatriz. o cara vai lá, machuca você com agulhas e vai pintando o estrago conforme vai fazendo. e aquilo fica marcado pra sempre. quando eu era pequena, eu não entendia ainda o que eram as tatuagens. achava misterioso, davam um ar de perigo aos homens que tanto me atraíam. caveiras, cultura oriental, palavras rasgando a pele. umas são horrorosas, umas superam os donos. eu não entendia. minha vida era perfeita, eu tinha um emprego ótimo, casei com meu melhor amigo, ele cantava pra eu dormir. tinha problemas aqui e ali, mas quem não os têm? ele cantava pra eu dormir.

aí a vida vai levando a gente por caminhos que a gente não escolhe. e me divorciei. essa foi a primeira grande dor da minha vida. eu não sei como é a dor de quebrar um osso, nunca passei por isso. mas, sem comparar, era muita dor. mesmo sabendo que era o melhor, mesmo sabendo que era necessário. dói pra caralho. não se supera nunca algo assim, é o que eu acho. fica pra sempre um pouco de dor, e fica pra sempre um pouco do amor. mas a gente guarda aquilo numa gaveta, forra com renda, põe cheiro de flor, escolhe um puxador lindo que lembre aqueles olhos castanhos, e fecha. e a gente refaz a vida, transforma aquilo em boas memórias, em aprendizado. foram anos muito felizes, afinal, até não serem. refiz minha vida. arrumei outro emprego, me apaixonei de novo,

me apaixonei de novo. ele me ensinou a amar os beatles de uma forma que eu ainda não amava. e fez o divórcio doer menos. uma noite estou indo dormir e me despeço do novo namorado, que está indo para um show. vou dormir tarde naquela noite, porque a manhã seguinte era um sábado, e eu podia dormir até. acordo às nove da manhã com o telefone: ele nunca voltou do show. morreu num acidente de carro, voltando pra casa. gritei, gritei como um personagem de gabo faria, "a mulher que gritou por três dias". essa seria eu. e depois, a dor. uma dor que não sei até hoje medir. parece que a gente vai desmaiar, o ar não volta, não existe mais água no corpo pra chorar, começa a dar sede. ver aquele corpo todo quebrado no caixão, assimétrico, disforme. dezenas de fraturas expostas que não iam precisar ser escondidas. e a saudade. dilacerante. tudo que não fomos, tudo que eu não disse, tudo que ele não vai viver.

e lá se vai mais uma gaveta. cheiro de rosas, como o nosso chá preferido descoberto logo depois de eu fotografas a esquina da Ipiranga com a Sâo João. no fundo ecoa "happiness is a warm gun". mas aos poucos fui conseguindo organizar, um tanto de dor, um monte de amor, e ainda sobram partes pra fora da gaveta, mas refiz minha vida, de novo. venho refazendo, aos poucos, um dia de cada vez. tem dias que a gaveta ganha, e eu choro. tem dias que consigo fechá-la completamente. mas consigo viver em paralelo. e me apaixonei de novo. e de novo. e de novo.

quando a gente vive coisas assim, que marcam tanto a gente, começa a dar vontade de ter uma cicatriz. eu senti isso de forma muito forte, muito irresistível. se as dores que eu senti eram tão ou mais fortes que a de um osso quebrado, não sei dizer. mas comecei a sentir que precisava de cicatrizes, pra contar uma história com o meu corpo, como se marcar aquilo na pele fosse me dar a paz de que eu precisava. a dor das agulhas, a tinta que fica pra sempre, preenchendo um pouquinho daquele vazio enorme. marcando no corpo uma dor e um amor que são tão meus quanto o próprio corpo. e aquilo me deu um pouco de paz.

no fim, eu achei uma forma de transformar essas experiências em algo doce, como o pavê da vó annita. minhas tatuagens me dizem que eu posso viver, porque minha história não será esquecida, nem diminuída. virou uma parte de mim que todos podem ver, e eu não me importo, acho até bonito, como os quelóides que ficaram da minha cirurgia. se eu guardo minhas dores em gavetas pra poder viver um novo amor, minha história ainda está lá. e eu me sinto tranquila.

no momento estou procurando um novo amor. procurando não; me permitindo viver, e quem sabe ele aparece. desses assim, de se jogar, que sou dessas. não é fácil: pelo contrário, a idade torna cada dia mais difícil sentir certas coisas. mas eu acredito que sem intensidade não tem graça viver. é difícil sentir, e é difícil encontrar alguém que me aceite assim, como eu sou, com cicatrizes e gavetas e cabelo despenteado. cantando no chuveiro e sonhando em ter uma banda de jazz. chorando na tpm e nos shows da bethânia. sem tempo pra nada e querendo tudo. os bolsos com tantos sonhos que esqueço de encher de dinheiro. e transbordando de amor pelas pessoas e experiências e memórias.

eu quis contar isso aqui pra todo mundo entender que a vida segue, e pode continuar sendo incrível, apesar das fraturas. que cicatriz tem que ser motivo de orgulho e não de vergonha. que só tem cicatriz quem se machuca, e só se machuca quem vive. a vida pode continuar sendo incrível. a minha é.

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